Criatividade tem limites!

 

Como coach de relacionamentos de casal e alguém que reflete constantemente sobre o machismo estrutural em mim, percebi um desafio nas interações de casais heterossexuais. E me dei conta de que esse desafio inspira reflexões sobre muitos outros processos em que duas culturas conflitam (ou seja, além da cultura do homem e da mulher, outras culturas como do hétero e do LGBT+, do branco e do negro, e assim por diante). Em resumo, a pessoa em lugar de privilégio tende a perpetuar sua opressão porque sua criatividade não tem limites.

Como assim? Criatividade deveria ter limites?

Sim. Pois o nosso movimento para a criação é determinado por esses limites. A criatividade flui nos espaços onde ela pode – onde ela não pode, ela resseca. Explico: quando um homem entende que ele pode falar em nome de uma mulher, desautorizá-la, ou violenta-la psicológica, moral, social, sexual ou fisicamente, ele autoriza-se a criar estratégias para lidar com a mulher dentro desse espaço. A mulher está enchendo meu saco? Tapa nela. Foi inconveniente? Eu falo por cima dela. Está se achando muito? Eu critico e desmereço.

Entretanto, quando o homem internaliza que esses comportamentos são inaceitáveis, a sua criatividade simplesmente não pode frutificar nesses espaços. Ele não se dá autorização para imaginar ou experimentar diferentes formas de dominação do feminino. Se ele não pode criar nesse domínio, o que restará na hora que ele precisará lidar com os conflitos naturais e inevitáveis que terá com as mulheres à sua volta?

Quando a criatividade encontra o limite colocado pelo feminismo, ela será forçada a fluir em outros espaços – por exemplo, o do diálogo. O homem será levado a criar maneiras de conversar de maneira igualitária, de negociar com dignidade, de se conectar com empatia.

Quando a criatividade tem autorização para fluir num determinado espaço, as primeiras mudas a nascer são ideias e pequenos experimentos, que podem frutificar em sistemas metodológicos e ideológicos complexos. Estes, por sua vez, podem se tornar parte da cultura, legitimados na estrutura social, na educação, entre outros. Basta olhar para como as estruturas sociais ocidentais acolhiam as mulheres há 100 anos, com dinâmicas hoje consideradas absurdas, mas que eram totalmente naturalizadas na época, fazendo parte inclusive do sistema legal de muitos países. Homens já tiverem, legalmente, o direito de espancar um mulher com uma vara de espinhos ou assassiná-la por desconfiar de sua infidelidade!

A imposição de limites para a criatividade masculina, entretanto, obrigou alguns de nós a fluir nosso espírito criativo em outros espaços, fazendo-nos enveredar pelos frutíferos campos da comunicação não-violenta, da mediação de conflitos, do reconhecimento de privilégios e, principalmente, de se juntar às trincheiras da luta feminista. Começamos a trilhar esse caminho não por sermos incríveis (como alguns homens pseudo-descontruídos querem acreditar), mas porque nossa criatividade para a violência foi podada. Fomos obrigados a pensar como ser homens dentro de um círculo riscado pela força feminina.

A criatividade precisa de limites. Ela precisa entender em que espaços ela pode frutificar. É por isso que eu não consigo achar saudável os discursos e atos machistas, misóginos, racistas e LGBT-fóbicos que têm pipocado desde a ascensão política de Jair Bolsonaro. Ouvi de alguns o argumento de que “agora, pelo menos, a sujeira veio à tona”. Como se agora fosse mais fácil lutar, porque muita gente está falando o que sempre pensou.

Eu discordo.

O que está acontecendo é a autorização coletiva para a criatividade poder fluir em espaços onde não deveria mais fluir. Lideranças como Bolsonaro, pelo tom de seu discurso, apoiado pelo apoio ativo de outras figuras públicas e a omissão de outras, comunicam a um bocado de gente que ainda cultiva dentro de si a semente dos preconceitos violentos, que se pode pensar maneiras criativas de atuar esses preconceitos. De ser violento. Estamos dizendo para essas pessoas: sabe aqueles limites que viemos construindo há décadas (séculos?), com o suor, lágrimas (e vida) de muita gente? De muito negro, muita mulher, muito gay, muito pobre (e alguns privilegiados no apoio)? Então, agora está tudo liberado: pode deixar sua criatividade fluir e falar e fazer o que quiser!

Por que existe a ideia do politicamente correto como chato? Porque é óbvio que quando a nossa criatividade possuía liberdade plena para se desenvolver numa direção, mas de repente a perde, nós sentimos um grande desconforto. Se minha criatividade, como homem, teve permissão para pensar diversas maneiras de violentar uma mulher, e de repente eu não posso mais, o que me sobra como estratégia para lidar com o que não dou conta na relação com a mulher? Já que minha criatividade foi usada para desenvolver estratégias violentas, ela deixou de ser usada para pensar alternativas de diálogo e equidade. Ou seja, eu não me dei tempo para criar esse repertório. Então agora eu sou “obrigado” a usar estratégias que eu não tenho ainda, sendo que agora há pouco eu podia fazer o que eu queria dentro desse outro espaço (da violência), onde eu era rei.

Desenvolver novas estratégias, baseadas em novos paradigmas, dá um trabalho danado. E quem já está acostumado com privilégios detesta ter trabalho. Logo, o limite à minha criatividade é entendido como uma chatice, até como uma “opressão” (e daí vem homem falar que está sofrendo discriminação, branco falar que é vítima de “racismo reverso”, e outras bobagens). Só que não tem outra alternativa: para que a cultura mude, certas portas têm de ser fechadas à criatividade. Tem de proibir homofobia desde a escola. Tem de policiar o familiar que faz comentário machista sem noção. E temos de estar abertos para nós mesmos sermos podados por certos limites.

Ou vocês acham que estupro legalizado, sacrifício humano, matar pessoas só porque nossa honra foi questionada, entre outras barbáries dos tempos antigos, foram criminalizadas só depois que todo mundo de uma certa cultura, por meio de um processo de conscientização, entendeu que aquilo não podia? Não! Houve luta. Houve lei. Pessoas precisaram ser, literalmente, reprimidas. Suas criatividades sobre como melhor cortar a cabeça de um sujeito, tolhidas. E se na primeira geração tudo talvez parecesse estranho, chato, à medida que novas gerações nasciam já entendendo aquele limite como pressuposto, suas criatividades fluíram para outros espaços. E – olha só! – novos mecanismos legais, jurídicos e sociais para lidar com os mesmos desafios de antes surgiram. Mecanismos mais justos. Inclusive um tal de Direitos Humanos, que está sendo tão questionado atualmente.

Então, voltamos ao paradoxo da tolerância, do Karl Popper. Nesse caso, para a tolerância acontecer é preciso colocar limites claros e irrevogáveis na criatividade humana. Ela não pode fluir nos espaços que ferem a existência dos outros. Nos espaços que esmagam a diversidade e a liberdade humana.

Mas se é liberdade e diversidade, não deveria poder tudo? Não. Coloque um limite nessa criatividade aí, e a deixe trabalhar num conceito de liberdade e diversidade que inclui e nutre a natureza de todos. É surpreendente o tanto de ideia que temos sobre como sermos livres e diversos, de uma maneira inofensiva, amorosa e compassiva, quando a nossa criatividade é limitada a fluir nessa direção.

 

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