A arte da presença significativa

Desde ontem está tomando forma uma pergunta que já vem crescendo em mim há algum tempo: como anfitriar e sustentar a arte da presença significativa? Desde que comecei a compreender no meu corpo alguns conceitos espirituais que antes eram pura abstração, como “estar no aqui e agora”, e experimentei em retiros e outros momentos o poder do silêncio, ficou mais claro o quanto nem sempre a fala é o único ou melhor meio de compartilhar o que é significativo.

 

Adianto que eu sou totalmente a favor da conversa. Acho a palavra poderosíssima e um ótimo instrumento de expansão da consciência e de elevação espiritual. Inclusive, ela ajuda a construir a presença e muitas vezes é a escada que nos leva para aquele lugar onde não há mais nada a dizer. Por isso, a presença para mim se coloca como um potencial a mais a ser expresso, e não como algo “superior” ao diálogo falado.

 

A conexão com esse potencial ficou ainda mais forte nos últimos tempos porque, à medida que iam aumentando os momentos de felicidade, é como se a minha relação com as pessoas chegasse num ápice no qual a vontade era de ir ainda mais longe na mágica do que estava acontecendo, na sensação de êxtase no corpo, mas a boca não conseguisse achar palavras, e qualquer conversa iniciada a partir daí parecesse forçada ou não alcançasse a profundidade do que eu estava sentindo. E aí eu ficava sem graça, sem saber o que fazer – até com medo de fazer ou falar alguma “bobagem” que me (nos) tirasse daquele estado tão bonito e gostoso.

 

Às vezes, e em certos grupos ou contextos, esses momentos se transformavam em (ou vinham de) experiências “explicitamente” espirituais. Acabávamos fechando os olhos, meditando um pouco, cantando algum canto espiritual, ou qualquer coisa do tipo. Mas isso às vezes também começou a me parecer uma “fuga” – por não saber o que fazer, sinto que recorremos, às vezes, para um “ritual” que nos proteja de simplesmente estar na presença livre, fluida, sem contorno – e, portanto, assustadora, pois não sabemos para onde ela vai e nem o que pode emergir, dentro e fora de nós, a partir dela.

 

Aos poucos, à medida que fui também compreendendo a simplicidade do que, no meu corpo, é verdadeiramente espiritual, fui conseguindo sustentar uma presença que abria espaço para sentir cada vez mais a pureza e a beleza do momento presente. Sem precisar honrá-lo com nenhuma palavra bonita, nenhum mantra, nenhuma sabedoria espiritual, nenhuma conversa significativa, nada. Sem precisar chorar, tornar sagrado, ritualizar. Sem precisar inclusive falar ou fazer nada espiritual – às vezes a situação em questão era absolutamente mundana.

 

Mas, em algum lugar silencioso, simples e tranquilo, somente estar ali, naquele lugar, ou com aquelas pessoas, era absolutamente significativo. Dourado. Precioso. Era tudo aquilo que não é possível expressar com palavras. Experimentei isso inúmeras vezes com minha esposa: longos períodos sem falar ou fazer nada, apenas comungando de estarmos um com o outro. Às vezes apenas se olhando, até uma emoção profunda e impossível de se expressar tomasse nosso corpo.

 

Também senti isso com minha mãe, no mês que passei com ela no começo deste ano – por exemplo, nas várias vezes em que sentávamos para jantar, às vezes falando com a boca coisas pequenas, como sobre um programa de televisão, mas com o coração falando muito mais. E vivi isso em tantos momentos com a Comunidade SER, com amigos queridos, em trabalhos significativos, em rodas de risada sobre qualquer besteira ou falando com amigos sobre sexo em seu aspecto mais carnal – e, ainda assim, meu estado de presença tornava aquilo significativo e espiritual. E, também, claro, senti nos retiros, meditações coletivas, nas minhas práticas espirituais, na natureza e comungando das práticas de outras pessoas. Mas é tão bom sentir que a presença significativa não está só nesses momentos mais “oficialmente” espirituais, mas literalmente em qualquer momento. Por isso ela é uma arte – pois se trata de refinar não o que está acontecendo, para ficar “mais profundo” ou “mais espiritual”, mas refinar a nossa forma de estar nisso. E isso requer a sensibilidade do artista.

 

E, mais recentemente, tenho sentido isso aqui no Haiti. É tanta beleza nesse povo, e é tanto encontro bonito, que tenho experimentando essa arte em ainda maior profundidade. Com os queridos amigos que fiz aqui e com os quais consigo conversar livremente em inglês, são momentos em que simplesmente as palavras já não conseguem honrar o sagrado do que estamos vivendo. Com os demais, com os quais consigo conversar um pouco em francês, são momentos que transcendem a barreira da linguagem. Momentos de pura presença. Presença significativa. Nem dá para explicar muito, porque não é algo que os conceitos consigam capturar: é presença. Vontade de nos perder na dança do que nos faz feliz.

 

Agora, eu sei que ainda tenho muito que aprender sobre essa arte. Assim como não aprendemos de berço a anfitriar conversar significativas, não aprendemos a anfitriar a presença significativa. Eu ainda preencho muito espaço: com fala, com ideias, com soluções prontas, com julgamentos e preconceitos, com verdades formadas sobre muita coisa, com tentativas de me mostrar valioso e especial, para suprimir o medo da rejeição.

 

Então, olha só quanto espaço aberto para aprender e refinar uma arte! E, quem sabe, assim como nas últimas décadas a arte de anfitriar conversas significativas tem sido sistematizada e, assim, multiplicada – e, eu torço, vai ser matéria básica de qualquer processo de aprendizagem no futuro – pode ser que uma dia consigamos sustentar mais conscientemente espaços para ficarmos confortáveis e desenvolvermos a presença, mas não  a presença banal, ou a ritualizada, e sim a presença significativa, que nos permite viver no máximo de profundidade qualquer tonalidade da vida, da mais sagrada à mais profana, e qualquer sentimento, do mais gostoso ao mais difícil, e de estar inteiros para testemunhar o sagrado da vida em todos – absolutamente todos – os seus desdobramentos.

 

Vamos juntos desenvolver essa arte?