Estruturas de Poder: Gestão e Supressão da Raiva (2ª parte)

Nesta série de textos, compartilho reflexões sobre como criamos mecanismos de acúmulo de poder como estratégia (frágil) para lidar com nossa vulnerabilidade intrínseca. Por exemplo, a administração da raiva como um recurso, tal qual o dinheiro, que é distribuído desigualmente entre as pessoas, e gerido de forma a aumentar e perpetuar os poderes de alguns e suprimir o de outros.

 

A raiva é uma força que, entre outras funções, impulsiona o estabelecimento de limites. O seu uso, tal qual outras coisas, depende da maturidade de quem a manuseia. Mal usada, pode virar violência. Não usada, pode virar complacência com a violência. Bem usada, torna-se ferramenta essencial na garantia de direitos individuais e coletivos.

 

Exatamente por ser fonte de poder, ela é um recurso precioso e cobiçado. Mas como é de origem interna, não há como impedir que todos tenham posse dela. Pode-se, entretanto, regular o seu uso.

 

O primeiro passo é associar a raiva ao mal e à destruição. O segundo é convencer as pessoas de quem se deseja tirar o poder, de que elas se associarão ao mal e à destruição, caso expressem sua raiva. O terceiro é associar às pessoas a quem se deseja dar poder a imagem de heróis e reguladores do mal. O quarto é mostrar que, para que estas possam cumprir sua função de reguladores, devem ter a permissão para utilizar, em toda a sua potência… a raiva! O quinto e último é comprovar que, para que a ordem se mantenha, são essas pessoas que devem definir quando a raiva pode ser usada ou não, e como. São eles que definirão quando a raiva será considerada violenta e quanto será considerada justificável.

 

Um exemplo: a mulher é criada para ser doce e gentil. O homem, para ser o macho. Cria-se a ideia de que essa é a natureza da mulher e do homem. Se assim fosse, a mulher não reconheceria a raiva como estratégia de resolução de problemas. Não se reconhece o que não se conhece. Entretanto, o estereótipo clássico da vida familiar brasileira é a da mãe que, quando precisa, chama o pai para resolver a questão. E quando o pai entra na jogada… sai de perto!

 

Por que a mãe precisa chamar o o pai? Porque, socialmente, ele tem a permissão de usar a raiva na sua máxima potência, enquanto ela deve usar na potência mínima. E se a mulher resolver mudar as regras, e administrar sua raiva como bem quiser, será alvo muito mais forte de críticas (como agressiva, mulher macho, barraqueira, entre outros) do que o homem, que pode inclusive ser elogiado (como forte, firme, herói). E quem está na gestão dessa dinâmica, decidindo quem é barraqueira e quem é herói? Homens, na sua maioria, apoiados por mulheres que compraram esse discurso.

 

É o mesmo que acontece com o “cidadão de bem” e a “polícia”. Em princípio, uma das funções da polícia seria a de dedicar seu tempo para obter maestria em como expressar a raiva, para que ela não se torne violência (por isso não dá para qualquer pessoa ter porte de arma). Ou seja, todos deveriam estar aptos a administrar a raiva, e a polícia entraria em ação quando uma expertise extra é necessária. Na prática, contudo, uma parte significativa da população, que socialmente precisa suprimir sua raiva, transfere-a para a polícia, que tem a permissão social para expressá-la em sua força máxima, chegando à brutalidade. E quem faz a gestão disso é o Estado, com o apoio de outros setores (como parte da mídia), racionalizando como justificável a brutalidade policial e como violenta as manifestações da população comum.

 

E no mundo do trabalho, quem faz a gestão é o chefe. Ele pode atropelar o funcionário. Se o contrário acontecer, trata-se de rebeldia e insubordinação. E nas lutas sociais, quem faz a gestão é quem está no topo dos privilégios sociais. Eles podem ocupar agressivamente todos os espaços sociais, culturais e políticos. Se a mulher, o negro, o LGBT, o pobre, fazem isso, são vitimistas e baderneiros. Na administração dos recursos do planeta, quem faz a gestão é o mundo corporativo. Ele pode destruir ambientes, seres e pessoas. Mas quem luta contra o poder corporativo é radical, comunista ou depredador da propriedade privada.

 

Esse sistema, claro, está cheio de falhas. Os inúmeros exemplos de mulheres (e mães) que expressam sua raiva, por exemplo, mostram ao mesmo tempo que é impossível regular essa energia em todo mundo e, ao mesmo tempo, que as mulheres (como muitos outros grupos) estão reclamando sua raiva de volta. E como isso é muito perigoso, quem faz a gestão da raiva cria contra-ataques diretos (como no caso da repressão policial) e indiretos, sendo o mais grave deles a deturpação da cultura da paz.

 

Existe uma cultura da paz que se apropria da raiva para, com habilidade, usá-la na preservação dos direitos. Essa cultura não tem medo de gritar e até de lutar, se for preciso. Existe outra que coloca a raiva para fora da cerca e, para funcionar, precisa de um sistema social ordenado, com baixo nível de conflito – o que é impossível num mundo onde liberdade e diversidade existam. Para essa cultura da paz fofinha se sustentar, a ordem precisa ser garantida pela supressão da raiva de uns, que se sentirão culpados demais para se apropriar dessa energia de forma autônoma, e o uso dela por outros, que a usarão sem dó, nem piedade – e são esses que estarão no poder.

 

Como temos feito uso da nossa energia de raiva? A serviço de que estruturas de poder ela tem se colocado? Que medos nos impedem de sentir-nos livres para sermos donos dela?

 

 

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *